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A ESQUERDA E AS ARTES.

Wagner Geminiano

Doutorando em História pelo PPGH – UFPE.

Nos últimos anos o debate sobre qualquer tema tem se colocado, no Brasil, de forma muito turva. Temas simples ganham contornos nebulosos, quando não histéricos. Sempre perpassados pela não informação e pelo não saber produzem uma espuma bolorenta e fétida, que se traveste de debate de ideias e posições, quando na verdade sequer consegue expressar o mais rasteiro dos sensos comuns. A coisa tem chegado às raias do absurdo, ao ponto de determinadas questões já superadas e vencidas desde o fim da Idade Média terem voltado com força de debate sério, a exemplo daqueles que, nos dias de hoje, voltam a defender que a terra é plana e não redonda. Se o estado das discussões anda nestes temos diante de temas como estes, imaginem quando o tema requer uma maior reflexão e sofisticação de pensamento para abordá-lo como, por exemplo, as artes e sua relação com a sociedade.

Pois bem, e não é que arte passou a ser objeto de debate dentro deste quadro meio surreal de discussões a que me referi acima. A arte ou um determinado tipo de arte passou a ser não só questionada tanto do ponto de vista de sua qualidade estética – do dia para noite o facebook formou milhares de doutores e críticos de arte – quanto do ponto de vista de sua filiação política ou “ideológica”. Arte moderna virou sinônimo de “arte degenerada” quando não de “arte degenerada de esquerda” ou “arte do capeta em defesa da pedofilia, da zoofilia” e de sei lá mais o que. São estes os pareceres mais elaborados feitos pelos críticos de arte de facebook formados na última semana, sem nunca terem frequentado um museu, uma sala de exposição e quiçá visto uma tela ou algo que o valha pessoalmente. Mas em tempos de realidade hipervirtual isto parece não ter mais importância. Se eu acredito é assim mesmo afinal me disseram ou eu acredito que tenho “opinião própria”. Disto quero recortar apenas um aspecto para pensar e argumentar: a crença que associa, ou assim tenta fazer, arte, sobretudo arte moderna, e esquerda.

Esta é mais uma falsa polêmica criada por grupelhos radicais que tem transformado determinadas discussões em cortinas de fumaça a partir do histerismo que busca opor e esquerda e direita, com claras finalidades eleitoreiras e, sobretudo, para dar guarida e blindar interesses escusos que saqueiam o país enquanto grande parte da sociedade é levada a discutir, hipocritamente, um homem nu num museu. Numa sociedade em que mais de 96 % de sua população sequer frequentou um único museu ao longo do último ano, quem dera tenha acompanhado qualquer exposição de arte. Mas retomemos ao argumento central, ou a falsa polêmica. Quem estuda arte, artes plásticas, arte moderna e seu culto no mundo ocidental pós-idade média sabe muito claramente que ela sempre esteve ligada a valores burgueses.

O mecenato no Renascimento, a própria arte moderna como vanguarda de um mundo burguês, capitalista em expansão sob o signo do “tornar novo”, signo de uma época que buscava por abaixo todo e qualquer resquício do Ancien Regim. Esta arte sempre andou pari passu aos valores liberais e de culto ao individualismo burguês e aos seus valores libertários. A arte moderna é sua expressão mais bem acabada. As exposições, que no Brasil estão sendo censuradas por grupos ditos liberais taxando-as de “arte degenerada de esquerda”, não passa da mais rebuscada expressão dos valores liberais e do capitalismo tardio.

As esquerdas políticas, em especial o marxismo em suas diversas vertentes, sempre foram críticos ferrenhos deste tipo de arte, justamente por acreditarem que ela sempre esteve a serviço da reificação dos valores burgueses, liberais, portanto, do capitalismo. Que tal arte servia justamente para alienar e produzir aquilo que Marx chamou de fetiche da mercadoria que busca reproduzir os valores do capital. Seria, também, uma arte mercadológica sem qualquer engajamento político de crítica ao sistema ou de contestação dos valores do individualismo burguês. Seria uma arte produzida por e para retroalimentar estes valores. As esquerdas, em especial o marxismo, sempre propôs um outro modelo de arte. Uma arte engajada, com uma clara função política de contestação a ordem burguesa e capitalista. Uma arte pautada por valores universais e coletivos que rompesse com as pautas liberais e o seu individualismo libertário, focado nos costumes e nos modos de vida particularizados. Um exemplo clássico deste tipo de arte engajada é aquela produzida pelo pintor mexicano Diego Rivera. Uma arte para a revolução. Há vários outros exemplos, nas mais diversas expressões artísticas, deste tipo de arte engajada, desta arte com uma função social e política clara, bem definida.

É sempre bom lembrar aos incautos que determinados movimentos que hoje são associados sem a menor criticidade e de forma quase automática às esquerdas são produto das democracias liberais e seus valores: feminismo, movimento LGBT, ecologismo, etc. tem seu nascedouro dentro das democracias liberais e da luta pelas chamadas liberdades individuais. Mas o histerismo e a ignorância mobilizados por grupelhos aparelhados por uma elite totalmente descompromissada com qualquer ideia de nação ou de formação de uma sociedade mais justa, tem se utilizado disto para promover a barbárie e disseminar a estupidez entre uma sociedade desprovida de qualquer senso de orientação que, infelizmente, tem seguido qualquer romper de porteira rumando para onde a gritaria pareça ser maior e congregue em torno de si o maior grupo, sem saber que no final disto tudo está o precipício ou o abatedouro onde todos serão tragados pelo moedor de consciências daqueles que aparecem como seus supostos guias: mbls, fundamentalistas católicos e evangélicos, políticos e oligarcas inescrupulosos, ruralistas matadores de índios e depredadores do meio ambiente, reacionários e fascistas, o mercado que a todos abate em busca do lucro e da espoliação cada vez mais fácil.

Sob a falsa disputa entre esquerda e direita e por baixo da nuvem de poeira da ignorância, do histerismo e da hipocrisia reina, imponente, àqueles que sempre nos espoliaram. O rei não está nu, ele está vestido com o manto da falsa polêmica do nu alheio.

 

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